☕ Café com Satoshi #16: Países Invisíveis 🗺️👻
A China anda doida para anexar Hong Kong. Trump quer comprar a Groenlândia da Dinamarca. Onde é que já se viu, M&As (fusões e aquisições) entre países?
Hoje, deixamos a oscilação do $BTC de lado (entre 9.5 e 12 mil dólares nas últimas semanas), para abordar outro tipo de “volatilidade”: a das fronteiras geopolíticas.
Nesta newsletter, vamos falar de mapas. Você entenderá o link com o Bitcoin, já já.
🗺️👻 Países Invisíveis
Estamos em “estase cartográfica”.
No século 21, somente 3 novos países foram formalizados e incluídos na lista oficial da ONU: Montenegro, Sudão do Sul e Timor do Leste (Kosovo segue em vias de, ainda “barrado” pela Rússia).
Em contraste, o fim do século passado viu uma ebulição de novas nações. Os ex-membros da União Soviética são talvez o exemplo proeminente - mas o fenômeno se deu também “no terceiro mundo”. Dos países que oficialmente compõem a Ásia, por exemplo, mais de 3/4 (32) tiveram independência declarada entre 1900 e 2000.
No livro “Invisible Countries”, o autor Joshua Keating se debruça sobre a aparente “calmaria fronteiriça” dos últimos vinte e poucos anos. É importante que não se assuma ser uma tendência de longo prazo.
Vale lembrar, por exemplo, que a URSS resistiu durante toda a década de 80, para então se esfarelar em poucos anos - da queda do Muro em 89, ao fim definitivo em 91.
A organização da disputa pelo poder entre homens (o que chamamos de política) pendula. Certos períodos tendam à consolidação; outros, à fragmentação.
Uma visão de longuíssimo prazo sobre o número de Estados na Europa pode contribuir para o seu “zoom-out”.
Exploremos 3 hipóteses 👇
1. O final do gráfico aponta para cima. Pelo menos na Europa, a tendência de longo prazo (últimos ~150 anos) não é de consolidação, mas sim de fragmentação.
2. Grandes guerras têm efeito consolidador (o imperialismo anexando territórios conquistados); enquanto períodos de relativa paz inter-nacional conduzem à fragmentação (mais de-colonização e independências). Nic Carter sugere que criptomoedas se alinham com a obsolescência de contratos etno-nacionalistas antiquados, oferecendo uma opção para os que desejam “mudar” (opt out) seus bens privados e relações socio-comerciais (tradicionalmente supervisionadas pelo Estado) para “arenas de soberania supra-nacionais”.
3. A atualidade guarda semelhanças com o fim da década de 80 - com a notável adição da China à lista de focos de poder e tensão. Crescem bolsões de nacionalismo nos EUA e na Europa do Leste. No lugar de Gorbachev, temos Putin. Desta vez, a internet é nossa Glasnost. Será o Bitcoin nossa Perestroika?
🏴 Hong Kong, Liberland e a Ordem de Malta
Hong Kong adentra seu terceiro mês de protestos contra a lei que permite a extradição de cidadãos para a China. Na semana passada, perto de 25% da população foi às ruas, pacificamente, sob chuva. Um quarto da população. É como se 50 milhões de brasileiros se engajassem em uma mesma manifestação.
Hong Kong nasceu de um tratado. Pouca gente sabe, mas a autonomia da ilha sempre teve “prazo de validade”: o acordo atual expira em 2047. A especulação em torno da data não é das mais animadoras.
Hong Kong é um país, certo? Por que Taiwan - ilha tão parecida - não desfruta do mesmo status? O que configura um país? Um país “nasce” ou é “reconhecido”?
Joshua Keating lista casos que ilustram o quão maleáveis podem ser as respostas.
A Bélgica e a Holanda trocaram um pedaço de terra poucos anos atrás. A Índia constantemente se envolve em negociações do gênero. Hong Kong mesmo teve uma favela anárquica que prosperou, independente do colonialismo britânico, até o começo do milênio (quando foi demolida, e a população, incorporada).
Aos ciganos - etnia mais numerosa do mundo a não ter país para chamar de seu - qualquer clamor por território ou soberania sempre foi negado. Aos cavaleiros da Ordem de Malta - grupo ligado ao catolicismo que tem status soberano desde as primeiras Cruzadas -, foram dadas algumas das ilhas mais lindas da Europa!
O autor de “Invisible Countries” reporta a definição de “país” dada pelo presidente de Liberland, um enclave fluvial semi-autônomo entre a Croácia e a Sérvia: “nada mais é que fruto da imaginação de um povo”. Isto é, uma alucinação coletiva.
🕳️ E Se o Bitcoin Fosse um País?
A teoria declaratória do Estado aponta que um país deve ter seu próprio (1) povo, (2) cultura, (3) território e (4) soberania. O argumento de que o Bitcoin atende a esses requisitos está neste texto: “o Bitcoin e o Estado-Nação no Século XXI”.
A conclusão do “trem narrativo” desta newsletter já deve ter ficado evidente.
Tecnicamente, o Bitcoin também é um país. Probabilisticamente, deve sobreviver por muito mais tempo que o Estado que você chama de “meu”.
Em uma era na qual sua identidade, propriedade privada, relações comerciais e contratuais podem migrar desimpedidas, pela internet, é natural que os próximos bolsões de poderio político-econômico… sejam virtuais.
Note uma diferença-chave entre a “descoberta” da América por parte dos Europeus, e a “descoberta” do Bitcoin, por parte dos Estados-Império modernos: desta vez, o extrativismo é matematicamente impossível. Os colonialistas tem muito mais a ganhar se tornando amigos “dos índios”, em vez de lhes atacando.
As grandes navegações já não são mais mar adentro, mas web afora. A dimensão a ser explorada é outra. Os tesouros prometidos seguem tão reais quanto os de 500 anos atrás.
Não é mais Portugal ou Espanha que lidera a corrida. É a China. E o recado de Pequim à onda de proto-nações virtuais é claro: ou é descentralizado, ou será nacionalizado.
A Tencent é seu exemplo de cabeceira. A BitMain (mineradora) é outro caso relevante. O próprio Google teve de aceitar uma submissão simbólica para operar no país. O Facebook, com Libra, se mostra disposto a seguir o caminho alternativo.
Quais forças geopolíticas redesenharão o mapa, nas próximas décadas? Quais redes padecerão sob os punhos do Estado? Quais nações serão engolidas por redes?
Em termos de inovação política, os últimos 20 anos na internet foram de uma navegação sem rumo. De repente, parece que encontramos terra firme.
📖 Orwell X Huxley
O mundo receava por 1984. Quando o ano chegou, e a profecia não se realizou, tecno-utopistas suspiraram de alívio por toda parte. Os princípios da democracia liberal resistiram. O pesadelo orwelliano pernanecia sendo “coisa de livro".
Aldoux Huxley escreveu outra ficção distópica que capturou mentes mundo afora. “Admirável Mundo Novo” habita o mesmo panteão que "1984”, apesar de descrever um Estado diametralmente diferente.
Orwell alertava para a opressão imposta de fora. Huxley não via a necessidade de um Big Brother para privar o povo de sua autonomia, maturidade e história. Antevia que as pessoas aprenderiam a amar a opressão, adorando as tecnologias que “desfizessem” sua capacidade de pensar.
Orwell temia a proibição dos livros. Huxley temia a falta de razões para bani-los, uma vez que ninguém mais tivesse interesse em lê-los.
Orwell temia que a verdade pudesse ser escondida de nós. Huxley temia que ela fosse afundada em um mar de irrelevância.
Orwell temia que nos tornássemos uma cultura reprimida. Huxley temia que nos tornássemos uma cultura trivial.
Como o próprio Huxley escreveu, os libertários e racionalistas que tanto lutaram em oposição à tirania “negligenciaram o apetite insaciável do homem por distrações”.
Em “1984”, o povo é controlado pela aplicação da dor. Em “Admirável Mundo Novo”, o controle se dá pela aplicação do prazer.
Não é aquilo que odiamos que nos leva à ruína. É aquilo que mais desejamos.
Qual é a possibilidade de que Huxley - e não Orwell - estivesse certo?
Esta seção é uma tradução livre do prólogo ao livro “Amusing Ourselves to Death”.
📚 Leitura Recomendada:
🎭 WeWork Isn't a Tech Company, it's a Soap Opera (The Verge): a leitura objetiva do IPO do WeWork. Incluindo os empréstimos baratos da empresa para o próprio dono, e os terrenos que ele mesmo “aluga” para a companhia.
🏭 The Quick Case for WeWork as an Actually Disruptive Business (Alex Danco): e se as bizarrices por trás desse IPO tiverem razões de negócio lógicas? Leia também a análise classuda de Ben Thompson, que compara o WeWork à AWS: “raios commoditizadores” que transformam um custo historicamente fixo - servidores, ou aluguel - em variável.
🤭 We Should All Have Something to Hide (Moxie Marlinspike, 2013): qual é a chance de um cidadão nunca ter "desrespeitado" nenhuma das centenas de milhares de leis do seu país? Quantas conquistas civis (acesso à internet como direito fundamental; liberdades individuais; etc) não teriam acontecido se ninguém se atrevesse a questionar a lei, mesmo que no seu íntimo?
🥶 Bitcoin and Cryonics (Keegan Macintosh, 2013): a relação da moeda virtual com a ciência de se congelar células vivas vai muito além de Hal Finney (personagem da história do Bitcoin que optou por ser criogenado).