☕ Café com Satoshi #56: A Ameaça Existencial à Ethereum
Semana passada, um programa de computador entrou na lista negra de sanções americana - junto com terroristas e ditadores estrangeiros.
O programa se chama Tornado Cash. Ele não é executado num servidor qualquer, mas sim na blockchain da Ethereum.
O site do projeto foi derrubado. As contas dos fundadores foram suspensas no Github. Um dos desenvolvedores foi preso em Amsterdã.
O tema deve ditar os rumos da indústria nos próximos meses. O buraco é muito mais embaixo.
Esta newsletter resume tudo que você precisa saber.
🌪️ Poeira de Tornado Pra Todo Lado
O Tesouro Americano sancionou 44 endereços na blockchain da Ethereum, associados ao lançamento e à operação da Tornado Cash. Tornado é um contrato que “embaralha” moedas, ofuscando-lhes os rastros e aumentando a privacidade de quem as porta.
O contrato foi usado por hackers norte coreanos para lavar bilhões de dólares roubados nos últimos 2 anos. Mas boa parte das interações com o programa foi “legítima”. O próprio Vitalik confessou ter “anonimizado” fundos antes de doá-los para a Ucrânia, para minimizar a chance de represálias (é de família russo-canadense).
Sanções normalmente se aplicam a pessoas, empresas ou países. Tendo sido aplicada a um programa, esta deixou dúvidas no ar. Provedores de serviços em cripto começaram a bloquear pessoas que já tivessem interagido com a Tornado - mesmo que a interação se dera antes das sanções, e não importando o tipo de interação.
Em protesto, teve gente mandando dinheiro pra Tornado e em seguida retirando quantidades minúsculas de ETH (“poeira”, ou em inglês, “dust”) para endereços famosos. Apresentadores de TV e atletas dos EUA foram alguns dos alvos.
A carteira multi-assinatura que governava o tesouro do projeto (eles tinham emitido um token) foi “desmontada”. A entidade sancionada passou a não ter mais quaisquer “controladores”. A única forma de mexer nesse “tesouro” é através de votações entre portadores do token TORN.
Independentemente do que fizerem, o programa, em si, não tem um “botão de pause”. E jamais vai parar de funcionar.
🧹 Desobediência Civil Automatizada
O espalhamento de “poeira de Tornado” foi só o primeiro ato de desobediência a chamar atenção.
Logo criaram uma fábrica de Tornados: um contrato que qualquer endereço pode “chamar", na Ethereum, para implementar, sem esforço nenhum, uma nova versão do Tornado Cash. Esta fábrica ainda reembolsa as taxas transacionais de quem “chamou” o contrato.
Para contribuir com o ato de desobediência, você pode ou chamar o contrato… ou alimentá-lo com mais ETH, financiando assim “desobedientes” em outras jurisdições.
Estes “mini-Tornados” jamais atrairão a mesma liquidez (e, portanto, as mesmas garantias de anonimidade) que a versão original, mas o ponto não é este. O intuito é demonstrar como qualquer um pode publicar código sancionado na blockchain; como a replicação do software não pode ser suprimida; como o discurso é irrestrito e “a informação deseja ser livre”.
🌐 Você Está a 2 Graus de Separação de um Bandido
O site da Aave bloqueou a carteira bilionária do Justin Sun (fundador da Tron). A Balancer travou sua interface principal para endereços sancionados. A Metamask sucumbiu também, inibindo transações feitas por quem já tinha interagido com a Tornado no passado (ainda que essa configuração seja “driblável”).
Mesmo que “só” 44 endereços tenham sido diretamente sancionados, as ferramentas de compliance usadas por empresas de cripto optaram por exagerar na cautela, e têm marcado como “suspeitos” até mesmo endereços que receberam transações de outros endereços que, por sua vez, interagiram com a Tornado.
Mas, mesmo que só 0.03% dos endereços na Ethereum já tenham usado a Tornado… quase metade deles (41.03%) estão a 2 transações de alguém que já o fez! E mais de 90% da rede está a “4 graus de separação” de algum usuário original da Tornado.
Os bloqueios indiscriminados levantaram uma hipótese macabra.
Depois do Merge, da Ethereum, existe um risco real de que validadores americanos (como a Coinbase) façam lobby para que a censura a nível de protocolo seja normalizada. A responsabilidade do validador no proof-of-stake é muito mais explícita que a de um minerador no proof-of-work.
No PoS, os validadores, mesmo que não estejam produzindo o bloco em questão, atestam-no; e a falha em fazê-lo (inatividade) pode acarretar na perda de fundos (slashing, ou “inactivity leak”). A Coinbase não vai conseguir lucratividade sua operação de staking a não ser que o protocolo force todos os competidores a aderir às sanções da OFAC.
Suas opções são (1) convencer autoridades de que “atestar” um bloco não significa infringir sanções (mesmo que ele contenha transações “ilegais”) ou (2) desmontar a operação de staking para Ethereum.
🏰 Proof-of-Stake x Proof-of-Work
Bitcoiners se aproveitaram do imbróglio para cair em cima da 2ª maior créptomoeda.
O principal argumento do “lado laranja” é que o minerador, no PoW, pode escolher não trabalhar em blocos que contenham “transações sancionadas" - alguém o fará, e este minerador original pode trabalhar nos blocos subsequentes, sem prejuízo.
No PoS, negar-se a atestar um bloco é uma ofensa passível de punição. Quem o fizer vezes o suficiente acaba “ejetado” do grupo de validadores.
A diferença nas duas atividades é um detalhe semântico - tanto atestar blocos no PoS quanto produzir blocos no PoW são, no fundo, operações matemáticas cujos resultados se propaga pela internet.
Se o regulador quiser criminalizar uma ou outra, ele o fará, independentemente das nuances técnicas.
A razão real pela qual a Ethereum é mais frágil que o Bitcoin, nesse contexto, não tem nada a ver com PoS. Mas sim com a série de dependências externas que DeFi traz.
Há anos, por exemplo, discute-se o poder da Circle (emissora do USDC, 2ª maior stablecoin) na rede. USDC é a moeda mais usada como colateral no ecossistema - lastreando, inclusive, um terço dos DAI (3ª maior stablecoin). Se a Circle decide apoiar um “fork censurador” da Ethereum, boa parte de DeFi só continuaria funcionando nesta versão da rede.
Há também algumas vantagens no PoS no quesito de resistência à censura. A principal talvez seja a facilidade em esconder produtores de blocos - enquanto no PoW mineradores deixam pegadas de calor e consumo energético, a cadeia de suprimentos para máquinas de mineração pode ser estrangulada, etc.
No entanto, de nada adiantam essas propriedades se o stake, no PoS, acaba centralizado em meia dúzia de companhias americanas.
No fim, o “teste maior” da Ethereum (e de qualquer outra rede que cresça o suficiente para incomodar os engravatados) será se o mercado precificará um “fork que adere a sanções” mais caro que a “versão natural” da rede… especialmente se stablecoins forem resgatáveis somente no "fork sancionado”.
Mesmo que tal fork jamais venha a se concretizar, essa formação de preços pode se dar em mercados preditivos ou futuros; e tem raízes no debate que já fervora em redes sociais.
A guerra é narrativa. O lado que tiver os melhores memes vencerá.
Como o Bitcoin já demonstrou, o prospecto de qualquer fork é péssimo. “A jogada vencedora é justamente não jogar”.
Se um “fork americano” prospera, o que acontece quando surge uma lista de sanções chinesas, conflitante com a dos ianques? A politização da governança leva à infinita fragmentação.
A rede ganhadora é a que menos muda. A mais intransigente. Incensurabilidade a nível de protocolo é uma condição inegociável para se ter “neutralidade crível”.
🤫 “Todo Mundo Tem Algo a Esconder”
Esta frase é do Moxie Marlinspike, fundador do Signal.
Moxie diz que é imprescindível termos uma esfera privada na qual conversar e transacionar.
Todo mundo já quebrou uma lei antes, por menor que seja. Se não o tivesse, mulheres não teriam conquistado o direito a voto. Casamentos gay ainda seriam proibidos. E o uso de canábis medicinal não estaria salvando a vida de pacientes mundo afora.
Imagine uma realidade alternativa, em que a aplicação da lei é 100% efetiva, a ponto de potenciais ofensores saberem de antemão que serão identificados e presos.
Num sistema desses (como no filme “Minority Report”), os avanços sociais supracitados jamais teriam sido experimentados.
O discurso livre cria um mercado de ideias, no qual podemos escolher as melhores, através de deliberação e do processo político. Barrá-lo corrompe um dos pilares de qualquer sistema que deu certo nos últimos séculos.
“A Tornado foi criada só pra se ofuscar rastros de dinheiro ilícito” - dizem as autoridades holandesas. Quem flerta com o autoritarismo pode concordar.
Enquanto os alvos do Big Brother forem desenvolvedores anarquistas e colecionadores de moedas mágicas da internet, você pode até não ligar.
Mas e quando forem pessoas próximas de você?
No Nebraska (EUA), uma adolescente foi acusada porque a polícia intimou o Facebook a entregar dados e descobriu que ela visitou uma clínica de aborto.
O direito à privacidade online não é só um fetiche dos ciber-aventureiros. É algo com que você deve se preocupar, num mundo em que gasta cada vez mais tempo, dinheiro e energia na internet.
Quando for a vez das suas ideias entrarem na lista negra, pode ser tarde demais pra protestar.
🧠 Dicas de Leitura
🤫 We Should All Have Something to Hide (Moxie Marlinspike)
O texto do Moxie referenciado acima. Leia.
🤫 Inside the Crypto Black Markets of Argentina (Devon Zuegel)
Uma matéria sóbria sobre a proliferação das stablecoins numa Argentina fértil para criptos.
🌶️ A Hashtag #stableDiffusion no Twitter (Twitter)
Um compilado de vídeos feitos com o modelo de aprendizagem de máquina “da moda", Stable Diffusion. Você já leu por aqui sobre textos e imagens produzidas por modelos de ML, mas vídeos, desse jeito, vai ser a primeira vez.