â #87: A Hora da Verdade Mais Inconveniente đ
99% de vocĂȘs nĂŁo sĂŁo espertos o bastante pra entender este texto.
A guerra entre Israel e IrĂŁ me lembrou da ideia mais poderosa que eu jĂĄ li.
A do âmomento straussianoâ.
Leo Strauss foi um pensador alemĂŁo do sĂ©culo XX, para quem muitos clĂĄssicos da filosofia polĂtica foram escritos de forma esotĂ©rica. Ou seja: escondendo verdades incĂŽmodas sob uma aparĂȘncia de conformidade.
Por quĂȘ? Porque certas ideias sĂŁo perigosas. Porque a massa nĂŁo estĂĄ preparada.
Porque os poderosos nĂŁo toleram dissidĂȘncia. E porque, talvez, algumas verdades sejam tĂŁo perturbadoras que devam mesmo ser reveladas com cuidado.
NĂŁo Ă© sobre covardia, mas estratĂ©gia. PrudĂȘncia. Ă a diferença entre gritar "fogo" em um teatro lotado e orientar calmamente a saĂda.
âA verdade Ă© como a poesia, e a maioria das pessoas odeia ouvir poesiaâ.
âïž Carl Schmitt: NĂłs VS Eles
Deixe-me começar com um truĂsmo pouco controverso: na polĂtica, nĂŁo existe "nĂłs" sem um "eles".
Essa Ă© a tese incĂŽmoda de Carl Schmitt, jurista alemĂŁo do sĂ©culo XX: toda comunidade polĂtica se define pela distinção entre amigos e inimigos. O inimigo Ă© mais que um mero alvo retĂłrico, mas alguĂ©m cuja existĂȘncia Ă© vista como uma ameaça existencial.
A Revolução Francesa contra a aristocracia. O nazismo contra judeus. Os EUA contra o "Eixo do Mal". Ter um inimigo externo unifica, legitima, organiza. âSomos nĂłs porque nĂŁo somos como elesâ.
Vale tambĂ©m em menor escala: partidos polĂticos, torcidas organizadas, bolhas de internet. O "outro" Ă© sempre um espelho distorcido que ajuda a definir quem somos. O problema Ă© que, quando escolhemos um inimigo, corremos um risco existencial: o de nos assemelharmos a ele.
Ao combater o fanåtico, viramos inquisidores. Ao caçar terroristas, aceitamos a tortura. Ao condenar um piadista com discursos opressivos, apelamos para a opressão.
A paz, portanto, Ă© frĂĄgil, porque depende da suspensĂŁo temporĂĄria dessa lĂłgica tribal.
Peter Thiel equilibra a tese de Schmitt com um alerta moral: sociedades liberais devem escolher seus inimigos com cautela. Porque a luta pode transformĂĄ-las pra sempre.
O desafio Ă© reconhecer que o conflito Ă© real sem permitir que ele nos corrompa.
đ O Sonho Iluminista
Nos sĂ©culos XVIII e XIX, filĂłsofos do Iluminismo moldaram uma promessa poderosa: se deixĂĄssemos a religiĂŁo de lado e apostĂĄssemos na razĂŁo, no progresso cientĂfico e no livre comĂ©rcio, o mundo finalmente encontraria o entendimento universal.
Kant escreveu sobre uma âpaz perpĂ©tuaâ alcançada entre repĂșblicas racionais. Tennyson, o poeta, sonhou com um âParlamento da Humanidadeâ. Adam Smith via no comĂ©rcio global um antĂdoto contra o conflito. Afinal, quem iria bombardear seu melhor cliente?
Ă medida que o tempo passava, esse sonho parecia se realizar. A escravidĂŁo foi abolida. A eletricidade iluminou a Terra. As guerras mundiais terminaram em democracias. AtĂ© o comunismo, que ameaçava o modelo liberal, caiu de joelhos. O mundo virou uma aldeia global â e Ronald McDonaldâs, o seu embaixador da paz.
Essa fĂ© no progresso ganhou versĂŁo polĂtica: a democracia liberal seria o destino final da civilização. E versĂŁo econĂŽmica: a globalização criaria interdependĂȘncia suficiente para tornar guerras impraticĂĄveis. Em resumo: estĂĄvamos vencendo a irracionalidade pela inteligĂȘncia, o fanatismo pela conexĂŁo.
Mas o que essa visĂŁo nĂŁo percebeu â ou preferiu ignorar â Ă© que a razĂŁo nĂŁo Ă© a principal força que move a espĂ©cie humana.
âïž O Despertar
No dia 11 de setembro de 2001, a HistĂłria acordou de um sonho. AviĂ”es foram lançados contra duas torres gigantes no coração da cidade mais moderna do planeta. Junto delas, desabou tambĂ©m a ideia Fukuyamiana de que âa HistĂłria teria acabadoâ.
A maior potĂȘncia militar foi atingida por fanĂĄticos que nĂŁo queriam negociar, nem vencer uma eleição. Queriam morrer â e levar junto o sĂmbolo da modernidade.
Naquela manhĂŁ de TV Globinho interrompida, lembro dos rostos estarrecidos, e da pergunta que pairava no ar: "Como Ă© que o mundo, tĂŁo globalizado, costurado por diplomacia e tratados, ainda abriga gente que quer morrer matando?"
Pois a resposta estĂĄ naquilo que escolhemos esquecer.
Por trĂĄs do sonho iluminista, havia uma suposição nĂŁo dita: a de que o ser humano, no fundo, era razoĂĄvel. Que, uma vez educado, bem alimentado e conectado ao mercado, ele evitaria a violĂȘncia. Que fanatismo e guerra eram anomalias corrigĂveis com a civilização.
Mas e se essa premissa for falha?
E se o ser humano continuar sendo um bicho perigosamente imitativo, orgulhoso, vaidoso, capaz de matar por honra, inveja ou um delĂrio invisĂvel? E se a racionalidade for, na melhor das hipĂłteses, uma fina camada de verniz sobre o que realmente nos move?
O mundo pós-11 de setembro exige uma nova lucidez. Que reconheça que, por trås da civilização, ainda lateja a barbårie.
đ Girard e o Bode ExpiatĂłrio
RenĂ© Girard, pensador francĂȘs do sĂ©culo XX, abriu portas mais sombrias que as de Schmitt e Strauss. Para ele, a narrativa Iluminista nĂŁo era sĂł naĂŻve, mas uma ilusĂŁo deliberada.
Hobbes (âo homem Ă© o lobo do homemâ) imaginava que a âguerra de todos contra todosâ terminava com os homens concordando num contrato social - mas Girard chama esta de âa mentira fundamental do Iluminismoâ.
Girard propunha que a âguerra de todos contra todosâ nĂŁo era resolvida pela razĂŁo, mas pela violĂȘncia ritualĂstica - uma âguerra de todos contra Umâ.
Quando membros de uma comunidade entram em um conflito interno, e este se torna insuportĂĄvel, o grupo se reĂșne expurgando uma vĂtima singular, que absorve toda a culpa e medo. O sacrifĂcio coletivo desse bode expiatĂłrio encerra o ciclo da violĂȘncia, trazendo paz, e as instituiçÔes sociais que se seguem a ela.
Com o tempo, essas origens foram mitologizadas, com a vĂtima comumente sendo tornada uma deidade, ou sĂmbolo sagrado - para que o povo possa viver sem peso na consciĂȘncia sobre o sangue que sua comunidade originalmente derramou.
Ădipo, expulso de Tebas para acabar com a peste.
Jesus, morto apesar da inocĂȘncia, cujo sacrifĂcio traz reconciliação.
RĂŽmulo, que mata Remo antes de fundar Roma.
Girard posiciona a âviolĂȘncia sacrificialâ na origem da cultura humana. E Thiel sugere que o grande âponto cegoâ da modernidade Ă© a negação dessa fundação.
O francĂȘs adiciona um alerta apocalĂptico: se continuarmos a negar o papel profundo da violĂȘncia mimĂ©tica nas relaçÔes humanas, âsubestimaremos o escopoâ daquilo que pode dar errado.
O apocalipse Girardiano Ă© o retorno da violĂȘncia original sem bode expiatĂłrio, sem mitificação, sem freio. Uma guerra de todos contra todos â agora com cancelamentos diĂĄrios nas redes sociais e armas nucleares Ă disposição.
Thiel diz que nem progressistas nem conservadores estão bem equipados para navegar a situação.
Um progressista, neste contexto, Ă© alguĂ©m ignorante quanto ao passado violento da humanidade, ingenuamente crente na bondade natural das pessoas e nos ideais iluministas. Um conservador, por outro lado, Ă© alguĂ©m ignorante quanto ao futuro, apegado a instituiçÔes antiquadas como o estado-nação, como se assim pudessem conter a violĂȘncia moderna ilimitada.
Um se esqueceu do quĂŁo perversa a natureza humana pode ser. O outro falhou em perceber que o âgĂȘnio saiu da lĂąmpadaâ, e tudo mudou irreversivelmente. NĂŁo hĂĄ consenso sobre como responder.
O primeiro passo Ă© a coragem de reconhecer que o mundo nĂŁo Ă© guiado apenas por razĂŁo e interesse econĂŽmico. Que somos movidos por paixĂ”es, imitação, inveja, medo, e desejo de transcendĂȘncia. Que a paz Ă© uma construção precĂĄria. Que a violĂȘncia estĂĄ Ă espreita.
O segundo passo Ă© entender o mecanismo do bode expiatĂłrio, porque assim podemos interrompĂȘ-lo. Se o cristianismo teve um poder singular na histĂłria, foi o de revelar a inocĂȘncia da vĂtima. De expor o truque. De desativar o mito.
O sacrifĂcio de Um que desorienta a guerra de todos contra todos. Que livra seu povo da âmaldição da leiâ. Que dĂĄ um exemplo tĂŁo poderoso, que instaura um novo paradigma.
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đ A Contradição Liberal
Thiel destaca um paradoxo no cerne do liberalismo moderno: clama ser uma filosofia de paz, razĂŁo e direitos, enquanto foi fundada num ato de violĂȘncia que mais tarde optou por esquecer. Do LeviatĂŁ hobbesiano em diante, a ordem Ă© predicada no uso da força para conter a anarquia (o contrato social enforçado por um Estado forte).
No entanto, a mesma ideologia tende a subestimar a centralidade da violĂȘncia na manutenção da ordem. Quantas vezes vocĂȘ jĂĄ escutou alguĂ©m dizer: âeu nĂŁo compactuo com nenhuma forma de violĂȘnciaâ?
Sociedades liberais dependem da polĂcia, do exĂ©rcito e da lei para suprimir o caos, mas preferem nĂŁo reconhecer essa primalidade. Essa evitação as torna ideologicamente desarmadas quando confrontadas com ideologias que de fato abraçam a violĂȘncia.
Hoje, terroristas conseguem executar uma carnificina massiva independentemente de qualquer dissuasĂŁo. Um meme pode ser a faĂsca de um linchamento. Armas nucleares ou biolĂłgicas permitem que grupos pequenos matem numa escala sem precedentes.
Nas palavras de Thiel, âas fronteiras da violĂȘncia foram abolidasâ. NĂŁo se pode mais assumir que a violĂȘncia, na maior parte do tempo, permanecerĂĄ limitada, racional, ou que serĂĄ contida por qualquer coisa que nĂŁo seja mais violĂȘncia.
Para que uma ideologia sobreviva, precisa se preparar para os piores dos casos. Pensar adversarialmente. Lembrar das circunstĂąncias em que nosso prĂłprio sistema possa ser ameaçado, modificado, ou mesmo reconstruĂdo por dentro.
đ O Fim das NaçÔes
Tenho uma tese antiga: o Estado-Nação estå ficando obsoleto.
O Bitcoin trouxe ao mundo a primeira forma de propriedade inconfiscĂĄvel por meio da força. A consequĂȘncia lĂłgica da sua adoção Ă© o enfraquecimento dos âmonopĂłlios da violĂȘnciaâ.
Reconfigura-se o contrato social que definiu sĂ©culos de HistĂłria humana: indivĂduos precisam de um governo que garanta a proteção de suas propriedades, e o governo precisa deles para financiar sua sobrevivĂȘncia.
Martin Gurri, em âA Revolta do PĂșblico", explica como a popularização de novas tecnologias informacionais corresponde a disrupçÔes na âforma polĂticaâ dominante ao longo da HistĂłria.
A transição da cultura oral para a escrita nos permitiu superar o nĂșmero de Dunbar. Externalizamos a memĂłria. O conhecimento se tornou durĂĄvel. PortĂĄtil. Uma classe letrada ascendeu ao poder. E começou a coletar taxas.
A prensa de tipos mĂłveis deu fim Ă s monarquias feudais teocrĂĄticas, e originou o Estado-Nação âlaicoâ. O Cristianismo se fragmentou. A cultura saiu do monopĂłlio da Igreja. LĂnguas localizadas despontaram (inglĂȘs, francĂȘs, alemĂŁo), e ajudaram a criar consciĂȘncias nacionais.
A mĂdia de massa e a internet mudaram o perfil do lĂder estereotĂpico (aristocratas deram lugar a apresentadores de TV), mas ainda nĂŁo catalisaram uma nova forma polĂtica.
Alguns inferem que âa HistĂłria culminouâ. Afinal, o mapa-mĂșndi estĂĄ em âestase cartogrĂĄficaâ desde a virada do milĂȘnio; com atipicamente poucos novos Estados surgindo.
Pois eu leio a situação como âa calmaria antes da tempestadeâ. A internet foi sĂł um preĂąmbulo. Uma plataforma para a prĂłxima metamorfose polĂtica.
O custo marginal de se criar e propagar uma nova ideologia em 2025 é nulo. O mercado endereçåvel dela, na era da internet, é maior do que o de qualquer identidade nacional.
Mas o custo de desestabilizar uma ideologia com ataques informacionais tambĂ©m tende a zero. âCriar uma falsidade na internet Ă© ordens de magnitude mais barato do que desmenti-laâ.
Neste contexto, cada vez mais proto-ideologias despontarão (malthusianos, desaceleracionistas, elus/delus, Legendårios, etc). Mas também encolherå a meia-vida média das ideologias populares.
Num ambiente de mais entropia, prosperarão as visÔes de mundo mais anti-frågeis. Não necessariamente as mais morais, as mais racionais, ou as mais viscerais - mas as mais coerentes.
NĂŁo Ă© coincidĂȘncia que a religiĂŁo que mais cresceu no sĂ©culo XXI seja irredutĂvel e simples a ponto de surpreender os nĂŁo-iniciados. NgU. HODL. 21M. MOON. AtĂ© um gorila consegue entender. Mesmo que nem mesmo um PhD consiga explicar.
O homem pisou na lua em 1969, e Woodstock começou trĂȘs semanas depois. Abdicamos simbolicamente da âexploração para fora" em nome do âmergulho interiorâ.
Em retrospecto, dĂĄ pra dizer: foi aĂ que a âcultura Americanaâ bifurcou, e que a guerra cultural pelo Progresso foi perdida.
Os baby boomers originais, na juventude, teriam orgasmos intelectuais com a ideia de uma fåbrica de robÎs armados lançados pelos ares para impÎr democracia e paz nos quatro cantos do mundo. Mas hoje, as empresas americanas mais odiadas pelos adolescentes são a Anduril e a Palantir.
Eleger um presidente para cada cor da escala Pantone virou mais urgente que produzir energia solar barata acessĂvel para todos. A ciĂȘncia-como-coleção-de-fatos-aprovados tomou o lugar da ciĂȘncia-como-coleção-de-prĂĄticas-intelectuais.
Meus contemporĂąneos acham que a ordem social de que desfrutam Ă© uma consequĂȘncia ânaturalâ da HistĂłria, e nĂŁo o resultado de uma sĂ©rie de esforços delicadamente entrelaçados, num projeto multi-geracional para defender um povo e seus interesses. NĂŁo entendem que o conforto ao qual estĂŁo acostumados foi conquistado. Tratam a segurança que permeia suas vidas como âmĂșsica de fundoâ, uma caracterĂstica tĂŁo banal da existĂȘncia que nem merece explicação.
Sonhar com âconsensosâ Ă© vĂŁo; uma distração. O consenso Ă© o pai tĂmido da estagnação.
à imperativo encarar as verdades mais desconfortåveis, mesmo aquelas codificadas em mitos, para diminuir nosso risco da extinção.
Encontre seu grupo. Exercite a sua cognição. Aperte os cintos.
O momento straussiano Ă© fugaz. E, quando ele bater Ă porta, a maioria de vocĂȘs vai estar anestesiada demais pra perceber.
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